"Era bom estar sozinha. Era um ambiente novo e a ideia de conhecer as pessoas me apavorava. Isolar-me no silĂȘncio e sem contato social era confortĂĄvel", escreveu a atriz e educadora FabrĂcia Eliane no conjunto de textos que chama de minimemórias atĂpicas. Os trabalhos refletem sobre como foi viver 37 anos sem saber que tinha um grau leve do transtorno autista. Ela só foi diagnosticada no processo de buscar tratamento para as dificuldades do filho, hĂĄ pouco mais de dois anos.
No Dia Mundial de Conscientização do Autismo, celebrado hoje (2), a educadora revela que sempre percebeu peculiaridades em Arthur, que à época do diagnóstico tinha 9 anos de idade. Porém, foram os problemas dele em acompanhar o ritmo da escola que levaram a famĂlia a buscar um apoio mais consistente para lidar com esses obstĂĄculos. "Ele foi crescendo e, na escola, tinha dificuldades com a alfabetização. Uma dificuldade muito grande de fazer as tarefas", diz.
Muito antes disso, ela jĂĄ havia percebido que o menino não lidava bem com determinadas situações cotidianas. Desde que ele era bebĂȘ, eu percebia que provavelmente deveria ter déficit de atenção, porque era difĂcil amamentar, qualquer som externo e ele se distraia muito", lembra.
A identificação do transtorno foi um choque para FabrĂcia. "Como eu, mãe super atenta, educadora, não percebi?", se questionava. "Depois de passar esse perĂodo de me culpar, eu fui estudar para entender como poderia contribuir melhor", conta. O aprofundamento da pesquisa levou a educadora a perceber em si mesma muitos dos sinais indicativos do autismo.
Segundo o neurologista da infância e adolescĂȘncia do Hospital Albert Einstein, Erasmo Barbante Casella, muitas pessoas enquadradas no espectro leve do autismo, hoje, adultos na faixa de 25 ou 30 anos, não foram diagnosticados quando crianças. "Nesse perĂodo, os médicos não tinham uma formação na faculdade, na residĂȘncia, sobre o que é o autismo. Havia uma dificuldade de identificar casos mais leves", ressalta. Segundo ele, as informações sobre o tema passaram a ser muito mais difundidas nos Ășltimos 10 anos.
O autismo é um transtorno do neurodesenvolvimento que pode causar dificuldade na comunicação falada e não verbal, além de afetar a sociabilidade.
Mesmo atualmente, de acordo com Casella, nem sempre o diagnóstico é fĂĄcil e algumas famĂlias, às vezes, resistem a aceitar a condição. "A gente, como pai, às vezes, tem uma negação, tem medo de ouvir. VocĂȘ começa a suspeitar, as pessoas ficam cheias de dedos para falar", diz. Ele conta que é comum que a famĂlia relate a suspeita ao final de uma consulta motivada por outras razões, "quando todo mundo jĂĄ estĂĄ de pé".
FabrĂcia acredita que, além da falta de informação dos médicos, quando era mais jovem, o comportamento mais retraĂdo devido ao autismo acabava atendendo algumas expectativas sociais. "Quando vocĂȘ é mulher, o fato de vocĂȘ ser mais reservada, mais tĂmida, são consideradas como qualidades. Então, passa muitas vezes batido, vocĂȘ tenta mascarar tudo que vocĂȘ sofre, tudo que vocĂȘ sente", reflete.
Ao mesmo tempo, por não ser entendida como uma situação mais complexa, para além de um traço de personalidade, FabrĂcia diz que também enfrentou conflitos. Foi difĂcil fazer amigos no perĂodo de escola e faculdade, e existiam divergĂȘncias até dentro do relacionamento com o companheiro. "Ele queria ir para barzinhos, sair à noite. Eu me sentia super desconfortĂĄvel. Eu tive muitas brigas por conta dessa questão", relata.
Ela explica que o barulho e a interação social causam ansiedade e um profundo desgaste. "Quando eu fico muito tempo com outras pessoas, tendo que fazer social, acaba sendo muito desgastante. Se vocĂȘ fica muitas horas, é como te tirasse da tomada. Às vezes dĂĄ dor de cabeça, enjoo", detalha.
Se tivesse sabido mais cedo da própria condição, FabrĂcia acredita que poderia ter tomado decisões melhores sobre como conduzir a vida pessoal e profissional. "Se eu tivesse tido esse diagnóstico precoce talvez eu tivesse conseguido fazer esse direcionamento das escolhas mais direcionado às minhas potencialidades", diz.
Como exemplo, ela reflete sobre a profissão de professora. "Embora tenha vĂĄrias coisas que eu ame no meu trabalho com crianças, tem outras que me agridem tanto que me impedem que eu possa trabalhar. É frustrante", desabafa.
Erasmo Casella explica que, quando o transtorno é identificado ainda na infância, é possĂvel trabalhar diversas formas de estĂmulos para contornar as dificuldades enfrentadas pelas crianças. "Algumas melhoram e são bem funcionais. A qualidade de vida das crianças que são tratadas adequadamente é completamente diferente", ressalta.
A identificação do autismo pode ser feita, segundo o médico, por profissionais como o neurologista infantil, o psiquiatra infantil e o pediatra do desenvolvimento. O acompanhamento multidisciplinar pode envolver terapia motivacional e fonoaudiologia.
A complexidade do autismo acaba dificultando, de acordo com Casella, o diagnóstico e tratamento do transtorno. "Não é fĂĄcil, porque é tudo muito caro. Um profissional consegue atender poucos casos. Teria que ser montado serviços de atendimento para crianças com autismo e com uma equipe multiprofissional", opina.
Saber da própria condição levou FabrĂcia a trabalhar o tema de diversas formas, entre elas um espetĂĄculo solo de palhaçaria em que traz as dificuldades que enfrentou em diversos momentos da vida. "Estar em cena é o momento que eu me sinto podendo ser eu mesma. Tem uma mĂĄscara que me protege, mas revela muita coisa", diz.
No palco, aparecem caracterĂsticas que marcaram sua vida e a relação com as outras pessoas. Uma delas, que divide com o filho, é a dificuldade para entender piadas. Ali, surgem ainda as pequenas confusões com a direita e a esquerda e outros detalhes que não costumavam passar desapercebidos por quem convivia com ela. "Estudei palhaçaria durante muitos anos, Na palhaçaria vocĂȘ acaba revelando do que vocĂȘ é, sem forçar o riso nos outros", diz.
Enquanto lida com as próprias questões, FabrĂcia também ajuda Arthur, hoje com 12 anos, com as dificuldades do autismo na pré-adolescĂȘncia. "Ele me pergunta todo o tempo o que tem que ser feito - "Hoje eu lavo o cabelo ou não lavo"", exemplifica. Devagar, ela tenta guiar para que ele mesmo encontre a resposta. "VocĂȘ lavou ontem? Como estĂĄ o clima hoje, estĂĄ Ășmido?", diz sobe como tenta incentivar as reflexões do menino. "Eu trabalho o mĂĄximo que de para que ele tenha autonomia".
Fonte: AgĂȘncia Brasil