Ator, de 52 anos, está em cartaz com 'Todo Chapéu Me Lembra Você', de Vitor Rocha, na pele de Otto, um homem de meia-idade que vive no armário de uma chapelaria há duas décadas Carmo Dalla Vecchia, de 52 anos, está no Teatro Décio de Almeida Prado, do Centro Cultural da Diversidade, em São Paulo, com o espetáculo Todo Chapéu Me Lembra Você, do Vitor Rocha, na pele de Otto, um homem de meia-idade que vive no armário de uma chapelaria há duas décadas.
O personagem se vê obrigado a sair de seu esconderijo e a compartilhar sua intimidade quando Thomaz (Theo Nogueira), neto do dono do estabelecimento, chega de surpresa ao local.
"O Otto é uma grande metáfora de um homem que foi trancado no armário durante 20 anos. Fiquei mais de quarenta! Então está tudo certo (risos)", brinca ao responder sobre a construção do seu personagem. "(Esse trabalho) calhou de falar de um tema que, para mim, é muito presente na vida, que é a diversidade e a comunidade LGBTQIAPN+", explica.
Carmo Dalla Vecchia
Rafael Cusato/Quem
A leveza para falar abertamente de sua sexualidade é algo recente para o gaúcho, que notou o quanto se posicionar o ajudaria. "Percebi que eu poderia diminuir o meu próprio preconceito falando do assunto. Eu iria me aceitar melhor. Acho muito estranho quando escuto 'não tenho preconceito' ou 'não sou homofóbico'. Eu mesmo não sei se eu não sou ainda porque cresci com as pessoas falando que eu era um sujeito errado. Quando alguém que não é gay vem me dizer que não tem preconceito eu arregalo o olho, "Ah é? Você tem certeza?". Daí elas mostram os preconceitos por outras vielas".
Em um bate-papo sincero com a Quem, Carmo, casado com o autor de novelas João Emanuel Carneiro, e pai de Pedro, 4 anos, fala sobre o presente que foi ser escolhido para fazer a peça, os diálogos abertos com o filho e sobre ser referência no Brasil.
Carmo Dalla Vecchia
Rafael Cusato/Quem
"Tem gente que trabalha com tantas, mas tantas metáforas e acha que não importa que o público não entenda. Então, acho lindo encontrar pessoas que queiram contar uma história que chegue ao entendimento das pessoas que estão sentadas na plateia. Isso é raro."
O Vitor Rocha [autor] sugeriu o seu nome para interpretar o Otto. O que te atraiu neste espetáculo e personagem?
Eu me sinto muito privilegiado por ele ter dito que pensou em mim para fazer este personagem. Eu já tinha visto um espetáculo do Vitor e achado excepcional. Ele tem uma legião de fãs. Acho bonito ele não ter vergonha de contar uma história. Tem gente que trabalha com tantas, mas tantas metáforas e acha que não importa que o público não entenda. Então, acho lindo encontrar pessoas que queiram contar uma história que chegue ao entendimento das pessoas que estão sentadas na plateia. Isso é raro. Digo que é um Netflix no palco, no melhor sentido. É uma história que você vai gostar e entender.
Quem é o Otto?
É um homem que teve que passar por situações muito duras relacionadas ao afeto e à sexualidade em um lugar em que as diferenças não eram aceitas. Não conto muito mais porque a peça é justamente sobre o que aconteceu com o Otto e o que o levou a estar trancado nestes 20 anos nesta chapelaria. Ele começa a ter uma relação com um menino, que por estar com o avô doente em um hospital vai à chapelaria para vender esse lugar. Ele tem uma marca de ser uma pessoa perigosa, justamente por ter uma sexualidade diversa.
Carmo Dalla Vecchia
Rafael Cusato/Quem
O projeto foi aprovado na Emenda Parlamentar no final do ano, daí o Vitor começou a escrever, entraram em contato com você e começaram a produzir de fato o espetáculo. Vocês tiveram pouco tempo para ensaiar. Como tem sido trabalhar esse texto com o Theo Nogueira, que faz o Thomaz?
Acho que esse é o primeiro espetáculo que eu faço com um mês de ensaio. O que é lindo de trabalhar com o Theo é que eu me vejo muito nele. Ele traz questões que eu tive na minha vida na idade dele fazendo teatro. Questões técnicas de como realizar o trabalho, encontrar uma maneira de deixar claro o texto para quem está assistindo, lidar com as inseguranças que a idade traz... Eu sou um ator que acredita muito em trabalho e não nesta de "você tem talento; você não tem talento". Acho que é ofício como qualquer outro, precisa de treino. O Theo tem inquietações que eu tinha na idade dele. Mas acho que talvez ele tenha mais sorte do que eu tive na minha vida por encontrar uma pessoa que olha para ele e se vê refletido. Sempre tive um cuidado muito grande com todas as pessoas com quem eu trabalho e trabalhei.
Quem Disse?
A questão da generosidade, né?
Essa questão da generosidade no trabalho do ator é muito relativa. O ator entende que não tem como estar ótimo no palco se o outro não está. Então é generoso porque precisa do outro presente em cena. O ator inteligente já sabe disso. Quando fiz Malhação, eu era um veterano trabalhando com uma garotada. Sempre tive um cuidado muito grande de deixar esses colegas livres. Se perguntasse a minha opinião, eu dizia algo, mas sem querer direcionar ou dirigir um colega em cena, como muita gente faz, para seu próprio benefício. Aquilo que ele quer que o colega faça, na verdade, é bom para ele e não para a história e para o colega. Aquilo o favorece. Então sempre deixei todos extremamente livres. Por isso tenho uma relação legal com todos que trabalho. Até hoje tenho um grupo com os meninos de Malhação em que eles me chamam de pai. A gente sai frequentemente juntos.
Carmo Dalla Vecchia e Theo Nogueira
Rafael Cusato/Quem
"Às vezes encontrava uma dificuldade, não sabia como realizar aquilo e ficava em um quarto escuro sem saber onde estava a saída e me debatendo contra as paredes. O processo de teatro é difícil."
Você encontrou também pessoas que tivessem esse cuidado com você quando você começou a carreira?
Não... Ninguém! Às vezes encontrava uma dificuldade, não sabia como realizar aquilo e ficava em um quarto escuro sem saber onde estava a saída e me debatendo contra as paredes. O processo de teatro é difícil. Você tem que entender uma vida que não é a sua, colocar em cena, ter habilidade de representar essa vida e levar o entendimento sobre esse personagem para outras pessoas... O ofício do ator é complexo, difícil e artesanal. Se eu puder ajudar e abraçar quem estiver ao meu lado, é o que eu vou fazer. Para todas as pessoas que estão começando a carreira é difícil mesmo.
Por você ter vindo da moda tinha também um olhar mais crítico dos outros colegas?
Acho que tudo o que é relacionado à beleza e à moda fica na forma. Todo o trabalho de um ator, apesar de existir a forma também, tem que estar conectado com a sua verdade interna, com os livros que você leu, filmes e exposições que você viu, com as experiências que você teve. Quando a pessoa é muito conectada com a forma e beleza, ela pensa na forma como fazer aquilo e não exatamente em como se conectar com o personagem e sentimento. Então, para essas pessoas é mais difícil. Encontrei essa dificuldade. Quando você vai subir a um palco ou fazer uma novela essa preocupação com a forma atrapalha. Não tem que pensar nisso. Se as pessoas te acharem com um aspecto legal, ótimo que aquilo te ajude, isso não será um problema. Mas na hora de se conectar com sentimentos universais de personagens, se você ficar se preocupando com isso, acabou. Será mais difícil de se conectar. Até mesmo porque até certa idade você teve contato só com isso e pensava que precisava ser apenas bonito e ter essa forma. Aí é mais difícil encontrar o processo como ator.
Carmo Dalla Vecchia
Rafael Cusato/Quem
Às vezes não estar preocupado com a forma e a aparência é mais difícil para quem trabalha sob os holofotes. Você me surpreendeu ao não se preocupar em ver as fotos deste ensaio antes...
Juntou uma série de coisas... Anos de prática budista e de psicanálise. Talvez seja isso. Por sinal, estou passando por uma situação engraçada. Deixei a barba porque queria e porque achei legal para esse personagem. As pessoas do Instagram odeiam a minha barba!
Vi que você fez um vídeo respondendo a uma pessoa...
Uma pessoa? Se fosse uma pessoa, tudo certo. Não é só uma pessoa. Esses dias eu recebi uma mensagem assim: "Por que você está tão feio? Estou falando isso porque gosto de você e te acho tão bonito". Eu respondo: "A beleza está nos olhos de quem vê e vai se fuder (risos)".
"Calhou de falar de um tema, que é muito presente na minha vida: a diversidade e a comunidade LGBTQIAPN+. É bom fazer o meu trabalho e falar sobre um tema que para mim é muito valioso."
Voltando a falar do espetáculo, ele é gratuito, está em um centro de diversidade, tem recebimento de doações para as vítimas do Rio Grande do Sul e ao final dos espetáculos, aos domingos, tem bate-papo com o elenco e pessoas referência em diversidade... Nesta atual fase da sua carreira você procura projetos que tenham mais engajamento social?
É lindo quando você tem essa oportunidade, mas é difícil. Às vezes, a gente tem que aceitar alguns projetos porque tem que trabalhar e pronto. Assim como a maioria dos trabalhos do mundo. Mas neste caso aqui calhou de falar de um tema que é muito presente na minha vida: a diversidade e a comunidade LGBTQIAPN+. É bom fazer o meu trabalho e falar sobre um tema que para mim é muito valioso.
Você se tornou uma referência...
Sou uma pessoa que não só resolveu assumir uma postura, mas falar sobre essa postura para o seu público.
Carmo Dalla Vecchia
Rafael Cusato/Quem
Nos vídeos que você grava para as redes sociais, você fala com muito bom humor de assuntos que geram reflexão, fazem uma crítica à sociedade e quebram preconceitos...
Quando faço teatro fico com menos tempo para criar isso, mas tenho feito. Acho que a única forma da gente tocar o coração das pessoas é propiciando o diálogo. Se você gritar, as pessoas tendem a fechar o coração e não te ouvir. Isso não significa que eu não possa gritar. Quando a pessoa é grosseira comigo, não sou a que vira o rosto para levar o outro tapa. Tendo a responder. Mas se quero propiciar um diálogo e fazer com que as pessoas evoluam, tenho que ter calma e tento falar com humor e ser doce.
"Se você gritar, as pessoas tendem a fechar o coração e não te ouvir. Isso não significa que eu não possa gritar. Quando a pessoa é grosseira comigo, não sou a que vira o rosto para levar o outro tapa."
Você sempre foi um cara reservado na sua vida pessoal. Com as redes sociais sentiu mais essa liberdade para compartilhar um pouco a sua essência e rotina com os seguidores?
Não só por causa das redes sociais, mas depois de eu ter decidido "agora eu vou falar". Muita coisa aconteceu até eu chegar neste lugar: idade, muito tempo de psicanálise, pandemia, morte de pessoas queridas e um entendimento maior sobre como o meu exemplo poderia trazer felicidade, alívio e pertencimento a outras pessoas. Talvez essa compreensão tenha feito com que eu quisesse muito falar sobre esse assunto. Mas entendo o quanto isso é difícil para algumas pessoas e, mais do que isso, o quanto esse momento de cada pessoa deve ser respeitado. Só a pessoa sabe da dor, dificuldade e do preconceito que sofreu para ter motivos para não querer sair do armário. Cada pessoa tem o seu tempo. Por sinal, sabe que a Quem foi responsável por eu ficar um bom tempo sem dar entrevistas? Há mais de 15 anos, me senti pressionado a sair do armário em um momento em que eu não estava nada preparado.
"Muita coisa aconteceu até eu chegar neste lugar: idade, muito tempo de psicanálise, pandemia, morte de pessoas queridas e um entendimento maior sobre como o meu exemplo poderia trazer felicidade, alívio e pertencimento a outras pessoas."
Carmo Dalla Vecchia
Rafael Cusato/Quem
Não falar sobre o assunto muitas vezes é uma forma de sobrevivência em um país tão homofóbico...
Percebi que eu poderia diminuir o meu próprio preconceito falando do assunto. Eu iria me aceitar melhor. Acho muito estranho quando escuto "não tenho preconceito" ou "não sou homofóbico". Eu mesmo não sei se eu não sou ainda porque cresci com as pessoas falando que eu era um sujeito errado. Quando alguém que não é gay vem me dizer que não tem preconceito eu arregalo o olho, "Ah é? Você tem certeza?". Daí elas mostram os preconceitos por outras vielas, "Não tenho preconceito, mas tenho medo que o meu filho sofra". Seu filho vai sofrer se não tiver acolhimento em casa. Ele vai ter que lidar com essas questões na rua e sofrer.
Por falar em criação, você sempre divide os diálogos que têm com o seu filho. Como você procura passar para ele esta questão da diversidade e prepará-lo para a homofobia que ele possa vir a sofrer por ter dois pais?
Isso nunca foi uma questão. Não sei se pelo fato de eu viver em uma circunstância em que o meu filho estuda em uma escola legal. Na sala do meu filho são cerca de 15 crianças e cinco são filhos de pais de casais homoafetivos. Antes do meu filho nascer, eu só queria uma coisa: que ele fosse bom. Sou uma pessoa de sorte. Dialogo muito com o meu filho e ele se tornou uma criança que tem muita segurança. Todo o encaminhamento que pudesse ser complexo ou difícil na criação de uma criança com dois pais eu não passei. Fiquei esperando o dia que o meu filho fosse perguntar pela mãe. Um dia ele olhou para mim e disse: "papai, não tenho mãe?". Eu disse, "não, meu filho, tem famílias formadas por uma mãe e pai, na maioria das vezes só por uma mãe, às vezes por uma mãe e uma avó e por dois pais. Entendeu?". Ele disse que tinha entendido e que não queria mais fazer nenhuma pergunta. Morreu o assunto.
Você disse que ser uma referência para outras pessoas também te motivou a expor mais da sua intimidade. Teve muito retorno das pessoas?
Quando resolvi falar sobre a minha orientação sexual, muitas mães vieram me agradecer. Tem gente que me para nas ruas e fala, "obrigado, graças a você eu tive coragem de falar sobre a minha orientação sexual com os meus pais e me deu o exemplo que pode ser legal se abrir". Eu tinha essa intenção também quando resolvi falar. Eu me intitulo de o "viado da família brasileira" porque em algum lugar as pessoas pensaram, "Ele é branco, tem passabilidade entre o universo hetero, tem trabalho e família estáveis... Então eu aceito". Isso é um preconceito. Um gay não precisa ter relacionamento, trabalho e condição financeira estáveis para ser aceito. Ao mesmo tempo ter essa passabilidade levanta um questionamento em algumas pessoas: "Será que o meu marido é gay? Ele se parece com esse cara". Isso incomoda também. Tanto é que a gente vê pouco personagem como eu na dramaturgia.
Carmo Dalla Vecchia
Rafael Cusato/Quem
"Um gay não precisa ter relacionamento, trabalho e condição financeira estáveis para ser aceito."
Recentemente você disse que sente falta de personagens gays na TV que fujam dos estereótipos. Você tem vontade de fazer como atores internacionais que têm assumido essa parte da criação para representar personagens que desejam fazer?
Meu marido já escreve e muito bem. Não tenho essa vontade. Mesmo porque eu ter vontade de escrever isso não significa que isso vá ser aceito. As pessoas têm que querer essas histórias e isso não passa só pelos autores. As pessoas acima deles que aceitam que essas histórias sejam contadas para a dona de casa. Eu acho que tem que contar para que ela possa aceitar e querer ver aquilo na TV. Não adianta fazer, mas ter que batalhar muito para ter um beijo gay. O público tem que pedir muito para rolar um beijo de um casal gay na dramaturgia. É chocante. Tem um momento em que a gente tem que pensar além do que é atraente para o público ali. A gente não quer que o mundo seja melhor e se desenvolva? Então não podemos negar algo que é natural. Gostaria de ver mais personagens gays em que a sexualidade não fosse foco. Em Todo Chapéu Me Lembra Você temos isso.
Carmo Dalla Vecchia
Rafael Cusato/Quem
Serviço:
Todo Chapéu Me Lembra Você
Teatro Décio de Almeida Prado do Centro Cultural da Diversidade (R. Lopes Neto, 206 - Itaim Bibi, São Paulo)
De 17 de maio a 16 de junho (Não haverá sessões nos dias 31/05, 1/6 e 2/6)
Sextas e sábados às 20h, e domingos às 19h.
Ingressos gratuitos
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